As Origens da Heráldica
A utilização de determinados símbolos e cores como forma de identificar indivíduos, famílias, tribos ou clãs é um fenómeno universal e com raízes remotíssimas. É impossível determinar com rigor quando teve início a prática de empregar símbolos como marcas de posse; ainda antes do seu aparecimento nos escudos, encontram-se emblemas proto-heráldicos em selos (de cera ou chumbo) e sinetes. A Heráldica é um aspecto particular desta tendência humana, que se tornou, na Idade Média europeia, num sistema com regras precisas e aplicação generalizada.Não existe uniformidade de opiniões entre os historiadores sobre o momento em que se pode situar o nascimento da Heráldica. Durante muito tempo foi corrente relacionar-se o início do uso de emblemas de natureza heráldica no Ocidente com as Cruzadas, devido ao contacto com a cultura oriental. É um facto que a heráldica tem semelhanças com a simbologia árabe; por outro lado, os Cruzados empregavam a cruz, sob diversas formas, como forma de se reconhecerem, e a cruz é uma das peças heráldicas mais antigas; mas, para alem de uma coincidência cronológica, não está provado que tenha sido com as Cruzadas que o mundo medieval adoptou o sistema de identificação pessoal que se veio a tornar na Heráldica. Inclusivamente, os primeiros Cruzados já levavam consigo escudos pintados e emblemas heráldicos... Foi com a ajuda de cruzados do norte da Europa que D. Afonso Henriquestomou Lisboa aos Mouros em 1147. Saltério, Abadia de Westminster - sec. XIII (British Library, MS Royal 2A XXII fol. 220).
Uma teoria recente (de meados deste século...) faz recuar as origens da Heráldica para a invasão árabe de 711. A comprovar-se, então a Heráldica teria nascido na Península Ibérica, o que explicaria a simplicidade e pureza heráldica de alguns dos brasões de armas mais antigos da Península (como, por exemplo, os escudos de Leão, Castela, Navarra e Aragão, e o escudo presumível de D. Afonso Henriques, as primeiras armas de Portugal).
Seja como for, parece indiscutível que o uso organizado e codificado de símbolos heráldicos apenas se verificou a partir do século XII, como resultado da evolução de símbolos e marcas de posse muito mais antigas.
Mas a Heráldica não se pode dissociar dos cavaleiros medievais e, particularmente, da guerra e dos torneios.
O uso de armaduras completas e, muito particularmente, dos elmos que cobriam completamente o rosto tornou necessário um sistema de identificação claro e facilmente visível de longe. Um cavaleiro medieval dentro da sua armadura era virtualmente impossível de distinguir, no calor de uma batalha ou desde a bancada de um torneio, de qualquer outro com uma armadura semelhante; os reis e chefes militares eram difíceis de identificar e seguir; durante um combate, amigos e inimigos confundiam-se. Estes factores levaram, desde meados do século XII, ao uso de emblemas pessoais pintados nos escudos e elmos e, por vezes, nas roupas do cavaleiro ou na cobertura da montada. Nos torneios, os elmos eram, quase sempre, encimados por uma figura em relevo (frequentemente uma peça do escudo), o timbre, que mais facilitava a identificação dos contendores.
O uso de escudos pintados com símbolos pessoais generaliza-se rapidamente, e é adoptado por toda a classe guerreira e, de uma forma geral, por toda a aristocracia (e mesmo por alguns municípios e corporações, que transpõem para selos os emblemas proto-heráldicos das bandeiras que empunhavam nas batalhas). Nesta fase, as armas de um cavaleiro representam-no a ele, individualmente, e, em certos casos, as terras que este possui e os seus laços de vassalagem. Não são, verdadeiramente, armas de família, nem se transmitem de pais para filhos. Cada novo cavaleiro assume as suas armas em função de diversos factores, como a linhagem, o território, as relações familiares ou os compromissos feudais. Por vezes, até, um cavaleiro não usava sempre os mesmos emblemas pintados nos seus escudos ou paveses de combate.
Para evitar duplicações e confusões, os emblemas e cores do escudo são rigidamente codificados. O monarca chama a si o poder de conceder brasões de armas, como forma de recompensar os serviços dos seus cavaleiros, acompanhando normalmente a doação de senhorios ou terras; os arautos-de-armas, funcionários régios encarregues de coordenar o uso de emblemas heráldicos, criam regras de concepção de brasões com vista à sua fácil visualização e identificação. Daí o uso de cores contrastadas e de figuras simples, características da heráldica mais antiga.
Este sistema de identificação pessoal torna-se, a partir do século XII, hereditário e passa a representar uma família ou linhagem. Desde o século XIII, regista-se o uso de brasões de armas por parte de mulheres, o que comprova que os mesmos eram já verdadeiros emblemas pessoais, e não uma simples transposição das armas de combate dos cavaleiros.Tinha nascido a Heráldica.
Uma teoria recente (de meados deste século...) faz recuar as origens da Heráldica para a invasão árabe de 711. A comprovar-se, então a Heráldica teria nascido na Península Ibérica, o que explicaria a simplicidade e pureza heráldica de alguns dos brasões de armas mais antigos da Península (como, por exemplo, os escudos de Leão, Castela, Navarra e Aragão, e o escudo presumível de D. Afonso Henriques, as primeiras armas de Portugal).
Seja como for, parece indiscutível que o uso organizado e codificado de símbolos heráldicos apenas se verificou a partir do século XII, como resultado da evolução de símbolos e marcas de posse muito mais antigas.
Mas a Heráldica não se pode dissociar dos cavaleiros medievais e, particularmente, da guerra e dos torneios.
O uso de armaduras completas e, muito particularmente, dos elmos que cobriam completamente o rosto tornou necessário um sistema de identificação claro e facilmente visível de longe. Um cavaleiro medieval dentro da sua armadura era virtualmente impossível de distinguir, no calor de uma batalha ou desde a bancada de um torneio, de qualquer outro com uma armadura semelhante; os reis e chefes militares eram difíceis de identificar e seguir; durante um combate, amigos e inimigos confundiam-se. Estes factores levaram, desde meados do século XII, ao uso de emblemas pessoais pintados nos escudos e elmos e, por vezes, nas roupas do cavaleiro ou na cobertura da montada. Nos torneios, os elmos eram, quase sempre, encimados por uma figura em relevo (frequentemente uma peça do escudo), o timbre, que mais facilitava a identificação dos contendores.
O uso de escudos pintados com símbolos pessoais generaliza-se rapidamente, e é adoptado por toda a classe guerreira e, de uma forma geral, por toda a aristocracia (e mesmo por alguns municípios e corporações, que transpõem para selos os emblemas proto-heráldicos das bandeiras que empunhavam nas batalhas). Nesta fase, as armas de um cavaleiro representam-no a ele, individualmente, e, em certos casos, as terras que este possui e os seus laços de vassalagem. Não são, verdadeiramente, armas de família, nem se transmitem de pais para filhos. Cada novo cavaleiro assume as suas armas em função de diversos factores, como a linhagem, o território, as relações familiares ou os compromissos feudais. Por vezes, até, um cavaleiro não usava sempre os mesmos emblemas pintados nos seus escudos ou paveses de combate.
Para evitar duplicações e confusões, os emblemas e cores do escudo são rigidamente codificados. O monarca chama a si o poder de conceder brasões de armas, como forma de recompensar os serviços dos seus cavaleiros, acompanhando normalmente a doação de senhorios ou terras; os arautos-de-armas, funcionários régios encarregues de coordenar o uso de emblemas heráldicos, criam regras de concepção de brasões com vista à sua fácil visualização e identificação. Daí o uso de cores contrastadas e de figuras simples, características da heráldica mais antiga.
Este sistema de identificação pessoal torna-se, a partir do século XII, hereditário e passa a representar uma família ou linhagem. Desde o século XIII, regista-se o uso de brasões de armas por parte de mulheres, o que comprova que os mesmos eram já verdadeiros emblemas pessoais, e não uma simples transposição das armas de combate dos cavaleiros.Tinha nascido a Heráldica.
Conceito
Para não termos a pretensão de dar a única e mais completa definição sobre o que é heráldica, citaremos várias delas:
"É a ciência que estuda e interpreta as origens, evolução, significado social e simbólico, filosofia própria, valor documental e a finalidade da representação icónica da nobreza, isto é, dos escudos de armas. Como ciência, a Heráldica é actual e autónoma, embora intimamente ligada à história e à arte."
"Ciência ou arte dos brasões, ou, Armaria. Palavra sinónima para Parassematografia."
"É a ciência que estuda as normas para a correcta interpretação dos brasões e escudos de armas."
Uma curiosidade: Na idade média surgiu um nome peculiar que pode dar mais significado ao conceito heráldico:
"Heraldo (ou Arauto) - Oficial que nos torneios de cavalaria e justas que estava encarregado da execução e progressão do espectáculo, etiqueta e protocolo. Era ele quem apresentava os cavaleiros identificados pelos escudos."
"É a ciência que estuda e interpreta as origens, evolução, significado social e simbólico, filosofia própria, valor documental e a finalidade da representação icónica da nobreza, isto é, dos escudos de armas. Como ciência, a Heráldica é actual e autónoma, embora intimamente ligada à história e à arte."
"Ciência ou arte dos brasões, ou, Armaria. Palavra sinónima para Parassematografia."
"É a ciência que estuda as normas para a correcta interpretação dos brasões e escudos de armas."
Uma curiosidade: Na idade média surgiu um nome peculiar que pode dar mais significado ao conceito heráldico:
"Heraldo (ou Arauto) - Oficial que nos torneios de cavalaria e justas que estava encarregado da execução e progressão do espectáculo, etiqueta e protocolo. Era ele quem apresentava os cavaleiros identificados pelos escudos."
Heráldica Assumida
Sob certos aspectos a Heráldica assumida é uma das mais notáveis e cheia de significado. Não se deve esquecer que ela está na base de todo o desenvolvimento da arte de bem orientar as representações simbólicas da personalidade.
De início, a Heráldica assumia-se por imposição utilitária. Cada um tomava para si um distintivo privativo para melhor se diferenciar dos outros.
Quase todos os antigos brasões de armas têm, na origem uma proveniência assumida.
Mas é a altura de perguntar: o que são armas assumidas?
Quando um brasão de armas é obtido por escolha do próprio diz-se assumido. Na origem, não resta dúvida que a forma de obter o brasão foi a de cada um o escolher como lhe aprouvesse. Mais tarde, a Heráldica apurou-se e cristalizou. As suas fontes originárias restringiram-se. A forma normal de obter o direito ao uso do brasão de armas estava então na herança familiar e, em certos casos, na concessão graciosa do soberano. Diz-se a forma normal porque, em alguns países, o uso de armas assumidas não deixou de ser praticado, sobretudo pelos artistas e oficiais mecânicos das grandes manufactureiras do norte da Europa que reforçavam siglas e monogramas com arranjos heráldicos, antepassados das actuais "marcas" industriais e comerciais.
Noutros países, como em Portugal por exemplo, o uso de armas escolhidas pelos próprios interessados em possuí-las não foi muito praticado. Foram sim, por certos institutos religiosos e corporativos, e assim a forma heráldica de ordenar distintivos e símbolos esteve relegada para a sua fonte hereditária ou para o acto gracioso do monarca. Chegou-se a tal ponto nesta restrição e apego ao preconceito hereditário das linhagens que se concediam, muitas vezes, cartas de brasão e nelas reconhecia-se, como boa e bem provada, uma linhagem sem antiguidade, só para atribuir ao titular o direito a brasão reconhecido de família vetusta. O processo foi cómodo para os preguiçosos reis-de-armas (oficial de armaria) que, de um golpe só matavam logo dois coelhos: não tinham o trabalho de conceber novas ordenações heráldicas e satisfaziam, em especial, aos olhos dos novos brasonados, o gosto vaidoso de se julgarem da velha estirpe, mesmo que esta assentasse, notoriamente, sobre mal urdido sofisma genealógico.
A confusão dos tempos modernos teve, pelo menos, a vantagem de reduzir os formalismos e permitir um impulso novo dado às formas de que veio beneficiar a Heráldica. Não é para desprezar a circunstância deveras notável de coincidir, precisamente, com o aparatoso e revolucionário fim dos chamados privilégios nobiliárquicos, o renascimento cada vez mais pujante da Nobre Arte que brota de todas as suas fontes, até daquelas que pareciam já adormecidas para sempre.
Renasceu assim o gosto pela escolha e adopção de distintivos ordenados segundo as regras da ciência e da arte heráldicas. A par do estudo dos antigos armoriais desenvolveu-se a prática de usar marcas pessoais indicativas de posse e estas tiveram a sua primeira e mais expressiva manifestação nos ex-libris pretexto involuntário de uma autêntica Heráldica assumida, já hoje senhora de exemplares valiosos não só no ponto de vista da Arte, como no do seu expressivo ordenamento segundo as regras do brasonário. Isto no que se refere a Portugal. Nos grandes centros europeus no norte da Europa dá-se em grande, um fenómeno semelhante e até a tradicionalista Inglaterra não teve dúvidas em facultar, através do seu famoso College of Arms, cartas patentes de armas a quem assumisse um brasão e depois o registasse mediante £105 (em 1966) de emolumentos e patente.
Entre nós a nova Heráldica assumida está ainda nos seus alvores. Se um surto económico fornecer certa abastança, com ela a Nobre Arte (de brasonar) também enriquece, pois será acolhida por todos que gostem de se rodear de beleza. A brilhante iluminura de um bonito brasão, como sinal de personalidade, não é coisa para se desprezar.
Como não há lei que a proíba e como se lhe reconhece utilidade (não é uma exibição meramente sumptuária) a Heráldica assumida justifica-se.
É oportuno lembrar que hoje a Heráldica não é uma ciência oculta, cabalística e hermética. É uma ciência, uma arte e uma técnica. Por seu intermédio consegue-se o harmonioso efeito dos símbolos no seu desenho e nas suas cores e metais. Por intermédio da Heráldica obtém-se, para uso próprio, um agradável cartão de visita multicolor.
Alguns exemplos de brasões assumidos mostram quanto a Heráldica é preciosa na poesia das suas expressões figuradas e na bela sinfonia das suas cores, mesmo fora das grandes "marcas" brasonadas.
O uso de sinais e de símbolos tornou-se mais do que um simples devaneio exibicionista. Tornou-se em verdadeira necessidade nascida da exigência de "distinguir", imposta pela confusa, multitudinária e globalizante vida dos dias que estão a decorrer.
À urgência de organizar cada vez melhor a sociedade de modo a tornar mais perfeitas as relações entre os seus membros, corresponde a reconhecida vantagem de distinguir indivíduos e grupos no meio do imenso caudal humano que circula em todas as direcções e por todos os meios, sobre a pequenez do globo terrestre.
Não é para admirar, portanto, o facto de se estarem a vulgarizar os "sinais" ou as "marcas" para usos puramente civis (como aconteceu com alguns municípios recentes e muitas mais freguesias), fenómeno semelhante ao que se verificou, no campo económico, com as marcas comerciais e industriais.
O gosto crescente pelos ex-libris como "marca" especial, destinada a indicar a propriedade dos livros é uma boa prova disto.
Da simples alusão simbólica e da alegoria das marcas de posse do género dos ex-libris, chegou-se à manifesta tendência de ordenamento heráldico, já por influência da Heráldica de família, exuberantemente "representada" na posse dos livros, já pela facilidade de concepção e ordenamento obtidos ao recorrer-se às regras da arte de brasonar.
Nem sempre o emprego destas regras logrou bom efeito, mas deve atribuir-se à deficiência da execução artística e não às salutares soluções heráldicas.
É possível classificar os ensaios heráldicos dos ex-libris em perfeitos e imperfeitos. E os imperfeitos classificarem-se incompleto e ou incumprimento das regras (por exemplo – omitirem-se esmaltes), quanto ao exagero de motivos externos e internos (por exemplo – predomínio das cartelas sobre elementos verdadeiramente simbólicos, ou inclusão, nos campos, de elementos externos típicos como as divisas). Tudo isto, porém, representa as vacilações próprias de um renascer titubeante.
As expressões simbólicas falantes, sempre tão compreensíveis, foram as que mais contribuíram para a Heráldica assumida e, em particular, para a Heráldica assumida moderna. A alusão por meio de figuras investidas de significado simbólico, desde há muito consagradas no brasonário, foi outro motivo de preferência dada ao estilo heráldico. [...]
As "marcas assumidas" são elementos vivificadores da Heráldica. É necessário, contudo, aproveitar melhor a arte Heráldica ao conceberem-se novos temas para que surjam em maior beleza de forma e de cor.
Ao alargar-se a Heráldica, ainda incipiente, dos ex-libris, à Heráldica pela das marcas de personalidade, impõe-se criar um regime que seja a garantia da sua função e respeito pelo direito da velha Heráldica de família e de domínio que estão, afinal, na base, como fontes preciosas de uma das mais belas manifestações do génio humano: insuflar o espírito da personalidade às figuras e às cores, atribuindo-lhes representação e enchendo-as de significado.
De início, a Heráldica assumia-se por imposição utilitária. Cada um tomava para si um distintivo privativo para melhor se diferenciar dos outros.
Quase todos os antigos brasões de armas têm, na origem uma proveniência assumida.
Mas é a altura de perguntar: o que são armas assumidas?
Quando um brasão de armas é obtido por escolha do próprio diz-se assumido. Na origem, não resta dúvida que a forma de obter o brasão foi a de cada um o escolher como lhe aprouvesse. Mais tarde, a Heráldica apurou-se e cristalizou. As suas fontes originárias restringiram-se. A forma normal de obter o direito ao uso do brasão de armas estava então na herança familiar e, em certos casos, na concessão graciosa do soberano. Diz-se a forma normal porque, em alguns países, o uso de armas assumidas não deixou de ser praticado, sobretudo pelos artistas e oficiais mecânicos das grandes manufactureiras do norte da Europa que reforçavam siglas e monogramas com arranjos heráldicos, antepassados das actuais "marcas" industriais e comerciais.
Noutros países, como em Portugal por exemplo, o uso de armas escolhidas pelos próprios interessados em possuí-las não foi muito praticado. Foram sim, por certos institutos religiosos e corporativos, e assim a forma heráldica de ordenar distintivos e símbolos esteve relegada para a sua fonte hereditária ou para o acto gracioso do monarca. Chegou-se a tal ponto nesta restrição e apego ao preconceito hereditário das linhagens que se concediam, muitas vezes, cartas de brasão e nelas reconhecia-se, como boa e bem provada, uma linhagem sem antiguidade, só para atribuir ao titular o direito a brasão reconhecido de família vetusta. O processo foi cómodo para os preguiçosos reis-de-armas (oficial de armaria) que, de um golpe só matavam logo dois coelhos: não tinham o trabalho de conceber novas ordenações heráldicas e satisfaziam, em especial, aos olhos dos novos brasonados, o gosto vaidoso de se julgarem da velha estirpe, mesmo que esta assentasse, notoriamente, sobre mal urdido sofisma genealógico.
A confusão dos tempos modernos teve, pelo menos, a vantagem de reduzir os formalismos e permitir um impulso novo dado às formas de que veio beneficiar a Heráldica. Não é para desprezar a circunstância deveras notável de coincidir, precisamente, com o aparatoso e revolucionário fim dos chamados privilégios nobiliárquicos, o renascimento cada vez mais pujante da Nobre Arte que brota de todas as suas fontes, até daquelas que pareciam já adormecidas para sempre.
Renasceu assim o gosto pela escolha e adopção de distintivos ordenados segundo as regras da ciência e da arte heráldicas. A par do estudo dos antigos armoriais desenvolveu-se a prática de usar marcas pessoais indicativas de posse e estas tiveram a sua primeira e mais expressiva manifestação nos ex-libris pretexto involuntário de uma autêntica Heráldica assumida, já hoje senhora de exemplares valiosos não só no ponto de vista da Arte, como no do seu expressivo ordenamento segundo as regras do brasonário. Isto no que se refere a Portugal. Nos grandes centros europeus no norte da Europa dá-se em grande, um fenómeno semelhante e até a tradicionalista Inglaterra não teve dúvidas em facultar, através do seu famoso College of Arms, cartas patentes de armas a quem assumisse um brasão e depois o registasse mediante £105 (em 1966) de emolumentos e patente.
Entre nós a nova Heráldica assumida está ainda nos seus alvores. Se um surto económico fornecer certa abastança, com ela a Nobre Arte (de brasonar) também enriquece, pois será acolhida por todos que gostem de se rodear de beleza. A brilhante iluminura de um bonito brasão, como sinal de personalidade, não é coisa para se desprezar.
Como não há lei que a proíba e como se lhe reconhece utilidade (não é uma exibição meramente sumptuária) a Heráldica assumida justifica-se.
É oportuno lembrar que hoje a Heráldica não é uma ciência oculta, cabalística e hermética. É uma ciência, uma arte e uma técnica. Por seu intermédio consegue-se o harmonioso efeito dos símbolos no seu desenho e nas suas cores e metais. Por intermédio da Heráldica obtém-se, para uso próprio, um agradável cartão de visita multicolor.
Alguns exemplos de brasões assumidos mostram quanto a Heráldica é preciosa na poesia das suas expressões figuradas e na bela sinfonia das suas cores, mesmo fora das grandes "marcas" brasonadas.
O uso de sinais e de símbolos tornou-se mais do que um simples devaneio exibicionista. Tornou-se em verdadeira necessidade nascida da exigência de "distinguir", imposta pela confusa, multitudinária e globalizante vida dos dias que estão a decorrer.
À urgência de organizar cada vez melhor a sociedade de modo a tornar mais perfeitas as relações entre os seus membros, corresponde a reconhecida vantagem de distinguir indivíduos e grupos no meio do imenso caudal humano que circula em todas as direcções e por todos os meios, sobre a pequenez do globo terrestre.
Não é para admirar, portanto, o facto de se estarem a vulgarizar os "sinais" ou as "marcas" para usos puramente civis (como aconteceu com alguns municípios recentes e muitas mais freguesias), fenómeno semelhante ao que se verificou, no campo económico, com as marcas comerciais e industriais.
O gosto crescente pelos ex-libris como "marca" especial, destinada a indicar a propriedade dos livros é uma boa prova disto.
Da simples alusão simbólica e da alegoria das marcas de posse do género dos ex-libris, chegou-se à manifesta tendência de ordenamento heráldico, já por influência da Heráldica de família, exuberantemente "representada" na posse dos livros, já pela facilidade de concepção e ordenamento obtidos ao recorrer-se às regras da arte de brasonar.
Nem sempre o emprego destas regras logrou bom efeito, mas deve atribuir-se à deficiência da execução artística e não às salutares soluções heráldicas.
É possível classificar os ensaios heráldicos dos ex-libris em perfeitos e imperfeitos. E os imperfeitos classificarem-se incompleto e ou incumprimento das regras (por exemplo – omitirem-se esmaltes), quanto ao exagero de motivos externos e internos (por exemplo – predomínio das cartelas sobre elementos verdadeiramente simbólicos, ou inclusão, nos campos, de elementos externos típicos como as divisas). Tudo isto, porém, representa as vacilações próprias de um renascer titubeante.
As expressões simbólicas falantes, sempre tão compreensíveis, foram as que mais contribuíram para a Heráldica assumida e, em particular, para a Heráldica assumida moderna. A alusão por meio de figuras investidas de significado simbólico, desde há muito consagradas no brasonário, foi outro motivo de preferência dada ao estilo heráldico. [...]
As "marcas assumidas" são elementos vivificadores da Heráldica. É necessário, contudo, aproveitar melhor a arte Heráldica ao conceberem-se novos temas para que surjam em maior beleza de forma e de cor.
Ao alargar-se a Heráldica, ainda incipiente, dos ex-libris, à Heráldica pela das marcas de personalidade, impõe-se criar um regime que seja a garantia da sua função e respeito pelo direito da velha Heráldica de família e de domínio que estão, afinal, na base, como fontes preciosas de uma das mais belas manifestações do génio humano: insuflar o espírito da personalidade às figuras e às cores, atribuindo-lhes representação e enchendo-as de significado.
As Regras e o Regime Jurídico da Heráldica Assumida:
Heráldica assumida já se sabe o que é. É o sector da Heráldica geral relativo às armas concebidas e adoptadas por qualquer pessoa que as assume como distintivo pessoal ordenado segundo as regras da Heráldica. Tão sugestivas são estas regras e de tão bom efeito a obra realizada dentro do seu espírito que não admira tenha, frequentemente, seduzido muitos levando-os a adoptarem qualquer sinal figurado para os representar.
Ao assumir-se umas armas, poderá aplicar-se toda a aparelhagem heráldica sem restrições, ou terão de guardar-se certas regras além das que presidem e à estilização?
Parece de elementar prudência formular, a este respeito, uma teoria. À parte o princípio geral da exclusividade das armas, que as torna pertença de certa e determinada pessoa, princípio aplicável a toda a Heráldica, há interesse em fixar uma orientação.
Ao escolher-se uma forma heráldica de representar a própria personalidade, pode adoptar-se qualquer sinal ou símbolo concebidos dentro do espírito da arte de brasonar, com excepção dos sinais ou figuras exclusivos de certos sectores da Heráldica. É o caso das bricas e do lambel na Heráldica de família, por exemplo. Isto para os elementos internos do brasão. Para os externos – em geral insígnias distintivas – as restrições impostas às armas assumidas são maiores. As coroas ou coronéis com a configuração especial indicativa das várias categorias de títulos, estão evidentemente, postas de parte. Não é possível assumir-se um brasão de armas encimado por uma coroa de conde, se o inventor das armas não tem direito ao título, ou rematar um escudo por uma borla doutoral se o que assume não for "doutor".
Não há dúvida: os elementos externos do escudo que tenham carácter de insígnias exclusivas de certos títulos, distinções honoríficas ou cargos, não podem ser usados segundo a fantasia daquele que assume as armas.
Onde, à primeira vista, poderão surgir dificuldades, é quanto ao uso do elmo e do timbre. Quanto ao timbre, o caso desvanece-se desde logo, visto o timbre, em regra, ser uma representação externa de um elemento interno do brasão ou, quando muito, um seu complemento simbólico externo diferente; mas, em qualquer circunstância, é sempre um complemento. Como distinção específica, o timbre só interessa para o escudo de certa fase da história da Heráldica. Como elemento simbólico muito expressivo e ornamental o timbre parece susceptível de ser assumido em complemento do escudo.
O uso do elmo traz outras objecções. Como é sabido, na Heráldica histórica a posição do elmo sobre o escudo varia segundo certas situações categorias, mas a posição ordinária é a de se colocar o elmo voltado a três-quartos para a dextra, (para a esquerda do observador, para a direita do "guerreiro utilizador").
Fora o caso do elmo colocado de frente e de ouro, próprio das Armas Reais e Nacionais, a posição dos elmos de perfil, por exemplo, tem hoje mero interesse histórico e pouco significam na Heráldica moderna. O uso do elmo voltado a três-quartos para a dextra generalizou-se e é a posição de melhor efeito no conjunto das armas, melhor até do que a do elmo colocado de frente.
Como suporte natural do timbre, não se vê inconveniente no uso do elmo voltado a três-quartos para a dextra sobre os escudos assumidos. É um bom motivo ornamental de enquadramento visto, com o seu paquife iluminado dos dois esmaltes predominantes (metal e cor) do brasão, ser um elemento lógico representativo das Armas e não colide, na Heráldica moderna, com qualquer categoria. Por motivos estéticos consagrou-se a posição do elmo colocado a três-quartos para a dextra.
Depois destas breves observações teóricas aplicáveis à Heráldica assumida, considere-se, em brevíssimos traços, o seu regime jurídico.
As armas assumidas não encontram na lei protecção expressa. No entanto, como a lei as não proíbe e representam de facto uma situação de facto atendível emergente do mais respeitável dos direitos – o direito da personalidade – a sua protecção jurídica é de considerar, quanto mais não seja por analogia, enquanto não surgir um estatuto próprio regulador desta nova forma de relações.
Ordenado ou não heraldicamente, o uso de símbolos de representação pessoal, tornou-se frequente. O ex-libris é, em regra, uma forma de simbologia assumida. É um sinal distintivo pessoal e tem por fim "marcar" a posse de livros. Muitos tendem a passar de simples "marca de posse" de livros para marca de posse generalizada e até como indicativo figurado de pessoa a juntar ao nome, no âmbito dos direitos da personalidade. O ex-libris é a fonte principal da heráldica assumida e tende a ultrapassar a sua função inicial, passando a representar a pessoa com o carácter de um verdadeiro brasão.
Assim a representação simbólica da pessoa concebida dentro do espírito da Heráldica, é mais alguma coisa do que simples "marca de posse": surge como outro elemento distintivo da pessoa em relação ao seu semelhante. É um reforço plástico e colorido destinado a reforçar, pela vista, a função característica do nome.
A lei vigente protege as situações jurídicas heráldicas já existentes (as criadas dentro da Heráldica de família, de domínio e de concessão). Não dispõe nada, porém, quanto às novas situações jurídicas heráldicas, nascidas da própria vontade dos portadores que assumem as armas.
A inovação simbólica e assumida admite-se nas marcas comerciais e industriais. Sobre as marcas pessoais ou novos distintivos, quer tenham ou não ordenamento heráldico, não há nada estipulado. A única maneira de fazer beneficiar da protecção legal, as várias formas da nova Heráldica assumida é tornar extensivo, por analogia, o regime vigente para as marcas comerciais e industriais, enquanto não se estabelecer expressa protecção legal baseada no espírito que informa o chamado código da propriedade comercial e industrial. As situações são semelhantes apesar de cada uma delas ter as suas particularidades.
Ao integrarem-se na representação geral da pessoa, as armas assumidas integram-se também nos princípios jurídicos implícitos em toda a Heráldica.
Análogas ao nome que completam, as armas assumidas estão afectas à personalidade e por isso – diferentes neste caso das marcas comerciais e industriais – imprescritíveis e inalienáveis.
Assumidas umas armas, poderão ser transmitidas a título gratuito? Podem ser doadas ou transmitidas por disposição testamentária? Podem transmitir-se por sucessão hereditária e neste caso assumem o carácter de armas de família. Se o que suceder nas armas não é da família do de cujus ou do doador, as armas não assumem o carácter familiar. Continuam na espécie das armas pessoais e dentro do regime das armas assumidas.
Além dos ex-libris ordenados em termos heráldicos, há outra forma de armas assumidas naquilo que em regra se chama – e impropriamente – o emblema de certas pessoas colectivas quando as não tenham por expressa disposição da lei e na forma por esta regulada. São as agremiações que assumem armas (ou emblemas) por deliberação das suas assembleias gerais ou outros órgãos diferentes. Neste caso, é claro, as armas distintivas não estão sujeitas à rigidez dos princípios reguladores da personalidade individual, mas seguem as normas legais e estatutárias do regime da personalidade colectiva. As armas conservam-se e transmitem-se conforme as deliberações dos órgãos respectivos e as estipulações estatutárias.
Se têm a sorte de encontrar um bom ordenamento heráldico, a crítica heráldica nada terá a dizer. De contrário, lamenta-se a má forma da simbologia assumida que, na maioria das vezes, só é má pela forma. Nada há a perder quando se recorre aos princípios, às normas e às regras da Heráldica, que são as mais relevantes na disciplina estética da simbologia das pessoas colectivas de armas assumidas.
Dentro desta Heráldica há uma categoria importantíssima de armas assumidas, ordenadas com todas as características da arte de brasonar. Formam como que uma espécie de família heráldica sui generis, tão expressiva e viva que tem de ser considerada como autónoma: o extenso sector da Heráldica eclesiástica, na parte respeitante às armas dos prelados, assumidas e exclusivamente pessoais.
Do der Herolds-Ausschuss der Deuschen Wappenrolle teve-se uma importante informação de grande interesse sobre o regime jurídico das armas assumidas e o sistema actualmente seguido na Alemanha:
Todo o cidadão alemão tem o direito de criar armas próprias. Este acto, por si, estabelece as armas para toda a sua descendência masculina. Mas as armas podem instituir-se em benefício de todos os seus primos que sejam parente na linha de varonia. O criador e “assumidor” das armas conserva o direito de disposição sobre elas mesmo quando os seu colaterais usem as armas criadas em seu favor ou não.
Antes de 1806 este direito podia ser contestado mas depois da supressão do Santo Império já não há legitimidade para isso. A grande maioria das armas registadas pelo Conselho do Deutschen Wappenrolle são armas criadas recentemente. A regra é registar as armas logo que são criadas. "
Bibliografia Portuguesa
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